quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Velhinho das Mensagens



Acredito que, para todo mundo, entrar na faculdade é meio que abandonar seu velho mundo e conhecer um mundo novo, totalmente diferente. Na verdade, não é bem abandonar. Mas confrontar seus valores e seu meio de vida com o de centenas de outras pessoas bem diferentes de você. Se antes, “diferente” era aquele coleguinha que sentava na sua frente, que torcia para o Vila Nova, mais gordo ou que não escovava os dentes, na faculdade a coisa era bem mais contrastante. “Diferente” era o cara que fumava maconha, ou que tinha 40 anos, ou que era Bombeiro ou era filiado ao PMDB. Enfim, o “diferente” era bem mais “diferente” que o que você via no ensino médio.
É um crescimento pessoal de 50 anos em 5, conviver de verdade com toda essa diversidade.

E é quando você faz 18 anos, tira carteira de motorista, se alista no exército (para os homens), vota de verdade, etc e tal.

O fato é que, além de todas essas diferenças no convívio, sua rotina ainda está vulnerável a uma série de maluquices. Você não precisa mais pedir para sair de sala (aliás, você pode até ficar fora dela o tempo que quiser, sem ninguém dar a mínima); vê pessoas deixando torneiras, luzes, computadores, ventiladores (ar condicionado não tem nem na sala do diretor) ligados por horas, dias e até finais de semana inteiros; pessoas de todo tipo entram no meio das aulas, de repente, para pedir dinheiro pra viajar de volta pra casa, para bancar um curso de teatro, para entregar panfletos, e mais um punhado de coisas.

E lá que eu vi o velhinho das mensagens pela primeira vez. Primeiro ano de faculdade, eu careca com medo de levar trote. Ele coloca a cabeça por um vão estreito da porta, olha para o professor ou professora e, sem esperar autorização, ele sai entregando mensagens espíritas de carteira em carteira. “Mas que porra é essa???” eu pensei da primeira vez.

Dai, mais ou menos toda semana, era a mesma coisa. Cabeça no vão da porta, falta de autorização, mensagens de carteira em carteira. Ficava todo mundo sem jeito, uns rindo, outros achando bonitinho. Uns professores faziam que não viam e continuavam dando aula, outros cumprimentavam, outros forçavam uma intimidade (“Ô, tio, já tava com saudade do senhor!”). A verdade é que ficava todo mundo sem saber o que fazer. E acabavam lendo os pedacinhos de papel com mensagens sobre otimismo, fé, perseverança, caridade.

Durante os meus cinco anos de faculdade, vi as situações mais hilárias com o velhinho. Ele já entrou em dia de prova, já deixou os professores mais carrascos sem jeito. Não tava nem ai. A sala era um silêncio só, ninguém nem respirava direito, com medo do carrasco e, de repente, lá estava o velhinho colocando a cabeça na brecha da porta e distribuindo mensagens sem autorização do escrotão. Todo mundo vibrando com a coragem do mensageiro e dando trela do ditador perdendo a compostura.

No fim da faculdade, com a colação de grau, a gente também tem que se despedir desse ambiente bacana. Bibliotecários, seguranças, vendedores, professores, colegas - e uma ou outra figura lendária perdida nos corredores. Precisamos falar tchau pra todo mundo. E o velhinho também ficou pra trás. Pelo que eu saiba, ninguém nunca perguntou o nome dele. Não sei o que ele faz, onde mora e, principalmente, por quê ele distribui essas mensagens na Faculdade? Foram cinco anos de curso. Eu poderia fazer coleção de papéizinhos (me arrependo amargamente de não ter guardado todos!). Já era.

Nunca mais vi o velhinho. Alguns colegas diziam que ele morreu, que voltou para o Maranhão, que mudou para a casa dos filhos. Mas ele ficou cristalizado lá na faculdade, nos tempos de maluquice e diferenças.

E hoje, trabalhando no Tribunal de Justiça, depois de quase 9 anos desde a primeira vez que eu vi aquela figura, ele bate na porta da minha sala. Que surpresa. Foi quase como se a faculdade batesse ali na porta também. Os bancos antigos, as bancas de livros, os servidores... todo mundo batendo ao mesmo tempo na porta. Mas foi só uma batida. Ele abriu um pouco a porta, colocou a cabeça no vão, olhou pra mim e para os outros dois colegas de sala e saiu distribuindo mensagem pra nós três. Sem pedir autorização. Era ele mesmo!

Aproveitei pra perguntar o nome dele. Seu Militão. Eu nunca que ia adivinhar!

Eu não vou fazer um esforço para criar uma situação fantástica aqui. Falar que eu tinha um problema me atordoando, e não achava solução, dai um dia apareceu o velhinho, conversou comigo e me deu uma mensagem com a solução para os meus problemas. Isso acontece nos filmes.
E talvez por esperar que as coisas sempre aconteçam como nos filmes é que as pessoas têm ficado cada vez mais frias, mais desesperadas, mais descrentes e mais amargas. Tudo ao mesmo tempo. Eu não preciso de situações aparentemente milagrosas para perceber que esse velhinho tá ai pra me ensinar. Ele faz o seu trabalho de formiguinha todos os dias, entregando suas mensagens a centenas, dezenas, milhares de pessoas sabe-se lá onde! Sem pedir moedas, sem esperar autorização, sem exigir reconhecimento. Ele só está lá, onde acha que tem que estar. Não precisa divulgar sua bandeira para gerar o desconforto. Não precisa de reafirmações para não desanimar. O seu silêncio e, ao mesmo tempo, sua presença marcante entram, da mesma forma, na sala de estudantes, no gabinete do juiz, na sala de office-boys, no bar, na farmácia. E, no entanto, a maioria é cega para perceber esses pequenos aspectos interessantes da vida. Essas pessoas malucas que significam tanto! Que vivem tão bem, para si e para os outros.

Eu não vou achar estranho se, durante minha vida toda, o sr. Militão entrar mais um punhado de vezes no meu escritório, gabinete, sala de concurso, maternidade, velório ou em qualquer outro lugar em que ele não precise pedir autorização para distribuir suas mensagens. Na verdade, até torço pra isso acontecer sempre.

A propósito, a mensagem que ele deixou hoje foi sobre ser feliz.

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