terça-feira, 28 de junho de 2011

O filho de político e a escola pública


Outro dia, o Senador Cristovam Buarque lançou em seu twitter oficial a indicação de uma notícia veiculada pelo Jornal do Brasil (disponível nesse link – http://bit.ly/jiOSq1). A notícia, assinada pelo repórter Júlio César Cardoso, dispõe sobre o projeto de lei 480/2007, de autoria do Senador, que tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.


Em linhas gerais, o projeto propõe a obrigatoriedade de que os filhos de políticos brasileiros estudem em escolas da rede pública de ensino.


O pensamento do Senador é o seguinte: gasta-se milhões todos os anos com mordomias despudoradas dos parlamentares; a corrupção é cada vez maior, e nada se faz para combatê-la; a pouca verba destinada à cultura e educação é impiedosamente desviada. E, enquanto isso, a população pobre e o resto da nação sofrem com a falta de educação de qualidade. A solução seria fazer a classe política responsável por esta bagunça provar as consequências de seus próprios atos, obrigando seus filhos a estudarem em escolas públicas.


Os motivos apresentados são mais do que justos. Todos deveriam lutar pela melhoria das condições do ensino público que é, sem dúvida nenhuma, um lixo. O que se questiona é a medida que ele escolheu para combater todos esses obstáculos e atingir seu fim. Finalidade nobre, claro, mas passando o rolo compressor em cima do interesse público, como se fora o melhor aluno da classe em que leciona Maquiavel.


Dai você me pergunta: Mas o que ele está querendo não é justamente preservar o interesse público? Isso. Essa é a finalidade! O que eu estou questionando são os meios! Por mais nobre que sejam seus motivos, deve haver o cuidado com a preservação de outros interesses públicos. Afinal, a educação pública não é o único interesse público. Ainda existem a saúde, a segurança, a cultura e, principalmente, a liberdade.


Vamos falar um pouco sobre essa tal Liberdade.


Segundo Rousseau, depois que o primeiro homem cercou um punhadinho de terra e passou a chamá-lo de seu, os problemas sociais começaram. Antes, o “bom selvagem” convivia pacificamente com seus iguais, num sistema totalmente anárquico. Com o surgimento da propriedade privada, o convívio social tornou-se inviável. Era cada um brigando pelo seu. A figura do Estado surge nesse momento. Todos abrem mão de parte de suas liberdades em prol de um ser superior que, gerindo as liberdades individuais, atuaria em prol da liberdade coletiva. É o chamado Contrato Social.
Essa uma metaforização sobre como é possível a existência de um Estado a governar nossas vidas, sem que tudo desmorone. Ninguém gosta de bagunça. Dai o Estado organiza a vida social, com nossa concordância (ao elegermos nossos representantes, ao seguirmos as leis, etc...), desde que não ultrapasse um determinado limite e passe a entrar em nossas vidas (na minha casa, eu faço o que eu quiser, por exemplo). Pagamos impostos porque dependemos do Estado. Porque dependemos do convívio social pacífico. Porque o Estado precisa de receita para pagar seus funcionários, sua máquina, seus programas. E nós não só concordamos com isso, como queremos, somos dependentes disso.


Só para frisar: estou falando de vontade pública, não individual. Não é você, enquanto serzinho individual, que vai ditar a vida do país. Então, não adianta você dizer que é obrigado a pagar imposto contra a sua vontade e que não tem escolha. É o povo brasileiro quem diz que quer, ao continuar pagando, ao continuar obedecendo a esse tipo de sistema e a crescer dentro dele.


Dai, quando eu critico o projeto de lei do Senador não é porque sou contra o ensino público de qualidade. Acho importantíssima a preocupação do parlamentar com essa parte do interesse público e acho que, se mais pessoas estivessem, como ele, comprometidos, as coisas já seriam bem diferentes. Entretanto, o meio como ele quer atingir sua finalidade é, como mencionado no próprio artigo do Jornal do Brasil, inconstitucional por natureza. Isso porque ele passa por cima do Contrato Social. Ao defendermos esse tipo de projeto, estamos dizendo: “Estado! Nesse caso, você está autorizado a entrar na vida particular de um grupo de pessoas e tirar sua liberdade individual de escolha”. É o mesmo caso combatido arduamente pelos manifestantes da Marcha da Maconha, por exemplo. “O Estado não pode dizer o que eu faço ou não faço com minha própria vida”. Não podemos tolerar esses tipos de exceção, porque abrir precedentes é perigoso! Abrimos essa concessão agora e amanhã não conseguiremos argumentar contra outras invasões do Estado.


Por outro lado, o que é que o filho do político tem a ver com a estória? Considera-se que o ensino público é um lixo e ai, para penalizar o político, jogam os filhos deles lá. Que beleza de pensamento, hein? O político continua lá, com sua vida cheia de regalias, andando de TupperWare com ar-condicionado. E o filho dele, que não tem absolutamente nada a ver com o jeito eventualmente escroto do pai dele, leva na cabeça.


E ainda tem isso!! Já estamos incluindo todo mundo no mesmo bolo. Todo político é ladrão. Todo político não presta. E dai vamos penalizar todo mundo com a supressão de seus direitos de escolha. Inclusive o sr. Cristovam Buarque, apesar de toda a sua luta pela educação no Brasil.


A grande questão é que as pessoas querem combater uma injustiça social com uma injustiça política, ou constitucional, ou legislativa, que seja. Dizem que a população pobre não tem direito de escolha, já que não têm condições financeiras para estudarem em escolas particulares, então devemos suprimir o direito de escolha dos políticos também. Se você é rico, mas não é político, está perdoado. Ou seja: misturaram o problema social da pobreza com o problema social da corrupção!! E querem combater os dois com uma aberração legislativa contra a liberdade individual. Medida esta que não vai nem contribuir com a redistribuição de renda, nem com o combate à corrupção. Verbas continuarão a ser desviadas em outros cantos, pessoas continuarão a ser pobres noutro canto.


Pelo contrário, querem aproveitar o sentimento egoístico dos parlamentares para forçá-los a investir na educação pública. Em vez de combatermos nossa mentalidade mesquinha de querer puxar a sardinha para a própria brasa, NÃO! Vamos reforçá-la. Não queremos políticos que pensem no interesse social. Queremos políticos que pensem nos próprios umbigos mas que, coincidentemente, tenham os umbigos nos lugares que queremos.


De outra forma, acredito que ainda que seja implementado esse modelo, brasileiro que é brasileiro sempre dá um jeitinho. Quando discutiam-se as cotas para entrada nas universidades, um dos modelos seria privilegiar estudantes da rede pública. Quem estudasse em escola pública teria direito a entrar por cotas. Ouvi de um professor: “Legal. Vou colocar meu filho numa escola pública e pagar cursinho pra ele, paralelamente. Dai ele entra pelas cotas com vantagem ainda!”. E ai? Além de obrigar o filho do político a estudar na escola pública, também vão proibi-los de estudar em cursinho, de frequentar ensino superior público e outras coisas mais também? Político que é político coloca o filho na escola pública e paga um cursinho paralelamente. Ou outra medida maliciosa que resolva o caso da forma mais fácil.


O projeto do Senador Cristovam Buarque tem motivações nobres, mas não merece prosperar. E temos que ter essa consciência. A luta por melhorias deve ser feita todos os dias, por todos nós, ao escolhermos nossos candidatos nas eleições, ao lutarmos contra nossas pequenas corrupções, ao fiscalizarmos os parlamentares eleitos. Medidas como a do projeto são paliativas. Muito tentadoras, mas com poucos resultados práticos. Servem mais para desvirtuar um Sistema que luta para ser coeso (mas que tenta!) do que para atuar na raiz do problema.


A discussão está aberta (ainda bem!)

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Tecla que falta no Teclado Brasileiro



O complicado da internet é a preguiça de se comunicar direito. Ao meu ver, é só isso. As pessoas realmente têm um pouco de preguiça de pesquisar, ir atrás e tudo mais. Mas ao mesmo tempo, temos preguiça de digitar, explicar direitinho o que queremos ou o que estamos respondendo. Isso, infelizmente, gera uma série de ambiguidades.

Imagine uma situação: Você está no MSN com alguém, dai essa pessoa te pergunta: “Onde eu acho um McDonald's aqui perto de casa?”. Dai você responde: “Se você googlear você acha”.


Dá para saber que tipo de humor você usou? Pode ser tanto de ajuda quanto de sarcasmo! E isso é uma peculiaridade da linguística brasileira. Me lembro da primeira vez que meu professor de inglês disse que, no exterior, as pessoas se comunicam por palavras. No Brasil, nos comunicamos com palavras e com tons de voz. Lá fora, é fundamental que saibamos utilizar todas as expressões idiomáticas “educadas”, porque não existe o jeitinho de pedir. O jeitinho de falar. Aqui, uma mesma frase pode ser dita com jeitinho, numa entonação simpática e agradável e também pode ser dita num tom extremamente rude e mal-humorado.


Na internet, não tem como ouvirmos o tom que a pessoa quis transmitir. E dai, a maioria interpreta como sendo o tom negativo. No caso do MSN, que eu citei ali em cima, o interlocutor pode interpretar sua resposta tanto como uma ajuda, quanto como sarcasmo. Ele pode entender a resposta: 1- “Olha, não sei, mas se você jogar no Google, com certeza vai achar um McDonalds perto de você.” ou então como 2- “Tá me achando com cara de lista telefônica? De guardinha de metrô? Já ouviu falar de um lance chamado Gúgou? SE VIRA!”.


No exterior, palavras bastariam. Mas, no Brasil, quando inventarem teclas para digitar frases com “jeitinhos” de falar, a comunicação vai ficar bem mais fácil!

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Sobre a Liberdade de Expressão





Um dia, Voltaire disse: “Não concordo com uma só palavra do que dizes. Mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-las”. E, desde então, as pessoas vêm repetindo essas palavras incansavelmente, no decorrer dos séculos e séculos, muitas vezes sem entender o real sentido da expressão. É uma das frases mais pesquisadas e citadas no Google.

Na época em que a expressão foi usada pela primeira vez, a França enfrentava o auge do absolutismo. As pessoas comuns (leia-se, que não tinham nenhum título de nobreza, nem riqueza) viviam espremidas entre o cetro do rei e o peso da bíblia. De um lado, as espadas da guarda real, do outro, a ira divina. Era obedecer ou morrer e ir para o inferno. E Voltaire cunhou a expressão, defendendo a submissão à lei e o desapego às tradições e superstições. Todos, sem exceção, deveriam agir nos critérios impostos por uma lei anteriormente apresentada. Se o mais alto dos reis a desobedecesse, seria apenas mais um "salteador de estrada ao qual se chama de 'Sua Majestade'", nos dizeres do próprio iluminista.

Essa semana, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a polêmica “Marcha da Maconha”. Depois de muito se discutir sobre a legalidade ou não do movimento, os reais e falsos objetivos, os envolvidos - e toda a poeira que se levanta sempre que alguém menciona a palavra “Maconha”- chegou-se à conclusão de que o movimento é legítimo e legal. No fim de todo o rebuliço, o STF se pronunciou respeitando o bom-senso: a “Marcha da Maconha” está em perfeita consonância com os ditames Constitucionais. E ai veio a chuva de críticas.

A primeira falha, ao meu ver, é no nome do movimento. "Marcha da Maconha"? Dá para entender errado mesmo. Tinha que ser "Marcha pela Regulamentação do Uso da Maconha", ou algo do gênero.

A nossa Constituição Federal, promulgada em 1988, logo após o regime ditatorial, é considerada por muitos como uma das maiores conquistas do povo brasileiro. Tem o apelido de Constituição Cidadã. E lá, está disposto de forma clara que é livre a manifestação de pensamento (art. 5º, inciso IV), bem como que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente (art. 5º, inciso XVI). Ou seja, direito de livre expressão e livre reunião.

Inicialmente, cabe esclarecimentos de que as pessoas envolvidas na discussão de forma séria dividem-se em dois grupos: os que acreditam que problemas como o tráfico de drogas e de armas, a violência e a corrupção não estão sendo satisfatoriamente resolvidos de acordo com os sistemas de combate atualmente adotados. Assim, uma ampla discussão deve ser feita no sentido de se achar novas maneiras de combate e, uma dessas formas, seria a regulamentação do uso da maconha, seja para uso medicinal, seja para o controle efetivo do governo (meios de produção, distribuição, tributação, etc). O outro grupo defende que qualquer manifestação acerca da regulamentação da maconha, em qualquer circunstância, seria apologia ao crime, já que o uso de drogas está previsto como crime em lei específica. E defendem, obviamente, que a situação deve permanecer assim, já que consideram o uso da maconha como prejudicial à sociedade, à saúde e aos bons costumes.

No meio dessa salada toda, bagunçando, estão as opiniões preconceituosas e as oportunistas. Movimento de maconheiro de um lado. Movimento para a liberação da diversão do outro. Uns aproveitam para defender suas famílias, apontando o fim do mundo que desfila das ruas. Outros aproveitam para abastecer seus carregamentos e fumar em paz no meio da muvuca do calçadão de Ipanema.

Cada um pensando no seu próprio umbigo.

É como a Marina diz: O que não podemos esquecer é que os baderneiros (tá, grude seu rótulo, chame de “maconheiros”, “marginais”, se quiser. Que seja!) existem em qualquer movimento social e são seu calcanhar de Aquiles. Seja no MST, na Marcha da Maconha, nas torcidas organizadas, sempre vão existir pessoas desvirtuando esses movimentos. É onde surge o ponto fácil de ser criticado. E a opinião pública é manipulada (e, muitas vezes, manipuladora) em cima desses pontos fracos. Quem não se aprofunda no tema pode se apegar facilmente a essas “alças” de discussão e pré-fabricar sua opinião.

Enquanto isso, os verdadeiros problemas persistem.

O STF fez muito bem. Não estamos adentrando no mérito da questão: Legaliza ou não? Libera ou não? Discriminaliza ou não? A questão não é essa. O fato é que, sendo um movimento pacífico, que prega a discussão de um problema social grave, em perfeita consonância com a Constituição, todo mundo deveria defender até a morte o direito das pessoas em participar ou não da manifestação, mesmo que não concorde de maneira alguma com o que está sendo dito. Ou você faz isso, ou então para de ficar citando Voltaire, pelo amor de Deus, já que você não concorda com ele.

SOBRE A OPINIÃO PÚBLICA: A dificuldade em se cumprir a lei, pelo Estado, está na mentalidade absolutista dos administradores. Mas por parte da população, está na submissão a tradições, superstições, fanatismos e costumes, muitas vezes arcaicos. Não basta que a lei evolua. A mentalidade das pessoas, suas crenças e tradições, também devem crescer. Não adianta termos a legislação mais avançada do mundo, se as pessoas continuam se esquivando dos problemas para andar em suas Tupperwares (lê-se Táper Uéres! HeuEHUe) com ar-condicionado, vivendo em suas penitenciárias privadas. Levando um susto toda vez que alguém fala “Maconha”, ou “Força Jovem” ou “MST”. Era exatamente contra isso que Voltaire lutava, lá na França do século XVIII – e enfrentaria dificuldades até hoje, talvez maiores ainda!

É fácil empurrar a sujeira para baixo do carpete. É confortável não tocar na ferida, quando a parte ruim do problema não te atinge. E é fácil citar Voltaire pra cima e pra baixo, achar bonito, colocar na folha de rosto do trabalho de conclusão de curso. Realmente acreditar no que está dizendo e colocar em prática, é outra história. Falar e não fazer se chama preguiça. Ou hipocrisia. Você escolhe.

Aposto que, depois de ler esse texto, vai ter gente me chamando de maconheiro. Mesmo eu nunca tendo usado qualquer tipo de droga. Nem pretendendo fazê-lo. Pra você ver como funciona a coisa.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

O Velhinho das Mensagens



Acredito que, para todo mundo, entrar na faculdade é meio que abandonar seu velho mundo e conhecer um mundo novo, totalmente diferente. Na verdade, não é bem abandonar. Mas confrontar seus valores e seu meio de vida com o de centenas de outras pessoas bem diferentes de você. Se antes, “diferente” era aquele coleguinha que sentava na sua frente, que torcia para o Vila Nova, mais gordo ou que não escovava os dentes, na faculdade a coisa era bem mais contrastante. “Diferente” era o cara que fumava maconha, ou que tinha 40 anos, ou que era Bombeiro ou era filiado ao PMDB. Enfim, o “diferente” era bem mais “diferente” que o que você via no ensino médio.
É um crescimento pessoal de 50 anos em 5, conviver de verdade com toda essa diversidade.

E é quando você faz 18 anos, tira carteira de motorista, se alista no exército (para os homens), vota de verdade, etc e tal.

O fato é que, além de todas essas diferenças no convívio, sua rotina ainda está vulnerável a uma série de maluquices. Você não precisa mais pedir para sair de sala (aliás, você pode até ficar fora dela o tempo que quiser, sem ninguém dar a mínima); vê pessoas deixando torneiras, luzes, computadores, ventiladores (ar condicionado não tem nem na sala do diretor) ligados por horas, dias e até finais de semana inteiros; pessoas de todo tipo entram no meio das aulas, de repente, para pedir dinheiro pra viajar de volta pra casa, para bancar um curso de teatro, para entregar panfletos, e mais um punhado de coisas.

E lá que eu vi o velhinho das mensagens pela primeira vez. Primeiro ano de faculdade, eu careca com medo de levar trote. Ele coloca a cabeça por um vão estreito da porta, olha para o professor ou professora e, sem esperar autorização, ele sai entregando mensagens espíritas de carteira em carteira. “Mas que porra é essa???” eu pensei da primeira vez.

Dai, mais ou menos toda semana, era a mesma coisa. Cabeça no vão da porta, falta de autorização, mensagens de carteira em carteira. Ficava todo mundo sem jeito, uns rindo, outros achando bonitinho. Uns professores faziam que não viam e continuavam dando aula, outros cumprimentavam, outros forçavam uma intimidade (“Ô, tio, já tava com saudade do senhor!”). A verdade é que ficava todo mundo sem saber o que fazer. E acabavam lendo os pedacinhos de papel com mensagens sobre otimismo, fé, perseverança, caridade.

Durante os meus cinco anos de faculdade, vi as situações mais hilárias com o velhinho. Ele já entrou em dia de prova, já deixou os professores mais carrascos sem jeito. Não tava nem ai. A sala era um silêncio só, ninguém nem respirava direito, com medo do carrasco e, de repente, lá estava o velhinho colocando a cabeça na brecha da porta e distribuindo mensagens sem autorização do escrotão. Todo mundo vibrando com a coragem do mensageiro e dando trela do ditador perdendo a compostura.

No fim da faculdade, com a colação de grau, a gente também tem que se despedir desse ambiente bacana. Bibliotecários, seguranças, vendedores, professores, colegas - e uma ou outra figura lendária perdida nos corredores. Precisamos falar tchau pra todo mundo. E o velhinho também ficou pra trás. Pelo que eu saiba, ninguém nunca perguntou o nome dele. Não sei o que ele faz, onde mora e, principalmente, por quê ele distribui essas mensagens na Faculdade? Foram cinco anos de curso. Eu poderia fazer coleção de papéizinhos (me arrependo amargamente de não ter guardado todos!). Já era.

Nunca mais vi o velhinho. Alguns colegas diziam que ele morreu, que voltou para o Maranhão, que mudou para a casa dos filhos. Mas ele ficou cristalizado lá na faculdade, nos tempos de maluquice e diferenças.

E hoje, trabalhando no Tribunal de Justiça, depois de quase 9 anos desde a primeira vez que eu vi aquela figura, ele bate na porta da minha sala. Que surpresa. Foi quase como se a faculdade batesse ali na porta também. Os bancos antigos, as bancas de livros, os servidores... todo mundo batendo ao mesmo tempo na porta. Mas foi só uma batida. Ele abriu um pouco a porta, colocou a cabeça no vão, olhou pra mim e para os outros dois colegas de sala e saiu distribuindo mensagem pra nós três. Sem pedir autorização. Era ele mesmo!

Aproveitei pra perguntar o nome dele. Seu Militão. Eu nunca que ia adivinhar!

Eu não vou fazer um esforço para criar uma situação fantástica aqui. Falar que eu tinha um problema me atordoando, e não achava solução, dai um dia apareceu o velhinho, conversou comigo e me deu uma mensagem com a solução para os meus problemas. Isso acontece nos filmes.
E talvez por esperar que as coisas sempre aconteçam como nos filmes é que as pessoas têm ficado cada vez mais frias, mais desesperadas, mais descrentes e mais amargas. Tudo ao mesmo tempo. Eu não preciso de situações aparentemente milagrosas para perceber que esse velhinho tá ai pra me ensinar. Ele faz o seu trabalho de formiguinha todos os dias, entregando suas mensagens a centenas, dezenas, milhares de pessoas sabe-se lá onde! Sem pedir moedas, sem esperar autorização, sem exigir reconhecimento. Ele só está lá, onde acha que tem que estar. Não precisa divulgar sua bandeira para gerar o desconforto. Não precisa de reafirmações para não desanimar. O seu silêncio e, ao mesmo tempo, sua presença marcante entram, da mesma forma, na sala de estudantes, no gabinete do juiz, na sala de office-boys, no bar, na farmácia. E, no entanto, a maioria é cega para perceber esses pequenos aspectos interessantes da vida. Essas pessoas malucas que significam tanto! Que vivem tão bem, para si e para os outros.

Eu não vou achar estranho se, durante minha vida toda, o sr. Militão entrar mais um punhado de vezes no meu escritório, gabinete, sala de concurso, maternidade, velório ou em qualquer outro lugar em que ele não precise pedir autorização para distribuir suas mensagens. Na verdade, até torço pra isso acontecer sempre.

A propósito, a mensagem que ele deixou hoje foi sobre ser feliz.