terça-feira, 25 de outubro de 2011

De intenções, a Rouanet está cheia!



Num país onde cada vez se critica mais sobre o que cada vez se sabe menos, um tópico favorito é: Lei Rouanet. A aplicação dela é correta, no modo como se faz atualmente?

Vemos eventos de grande porte como o Rock in Rio e obras ambiciosas como Tropa de Elite beneficiadas por uma lei que, teoricamente, deveria contemplar apenas pequenos artistas. É justo reclamarmos?

ORIGEM E JUSTIFICATIVA DA LEI

Em 1991, a inflação brasileira era monstruosa. A economia estava de mal a pior, os salários eram baixos (e estagnados!) e o nepotismo e a corrupção eram doenças crônicas que infestavam, visceralmente, alguns órgãos públicos. Diante disso, medidas tendentes à descentralização governamental foram tomadas, dentre elas a extinção da Embrafilmes – um dos órgãos  responsáveis pela gestão cultural da sociedade brasileira.

Nesse contexto, o presidente Fernando Collor sancionou a Lei nº. 8.313, batizada com o nome do então Ministro da Cultura, Sérgio Paulo Rouanet, conferindo um caráter pouco mais privado à gestão cultural.

Atingia-se dois objetivos com uma só medida: primeiramente, transferia-se a responsabilidade de parte dos subsídios culturais ao setor empresarial e, de quebra, protegia a cultura nacional, atacada pela invasão cultural do exterior, consequência da política neoliberal.

A Lei funciona em três frentes: através do Mecenato; do PRONAC via Fundo Nacional de Cultura; e do PRONAC via incentivos fiscais aleatórios.

No Mecenato, que é a forma mais conhecida de aplicação da Lei Rouanet, o investimento na cultura  ocorre no âmbito privado, de maneira direta. Antes, com a Embrafilmes, o governo federal arrecadava recursos e depois os destinava ao órgão para aplicação discricionária. Com a Rouanet, o recurso sai diretamente das empresas para aplicação em projetos aprovados pelo Ministério da Cultura, procedendo-se, após, ao abate no pagamento do imposto de renda da empresa financiadora.

Pelo Fundo Nacional de Cultura, o governo investe verbas diretamente na concessão de prêmios, financiamento de intercâmbios culturais e apoios diversos a projetos que não se enquadrem nas outras hipóteses, mas que tenham relevância cultural.

E pelos incentivos fiscais diversos, projetos que não se encaixem nas outras hipóteses, mas que possuam relevância e consistência, ficam autorizados a buscar apoio financeiro junto a empresas, com o posterior desconto no imposto de renda dos investidores.

Todas as hipóteses devem ser examinadas e autorizadas pelo Ministro da Cultura. Reformas recentes, no sentido de ampliar estes mecanismos, têm sido frequentemente discutidos.

A POLÊMICA

Esclarecidos de forma rápida os mecanismos e objetivos da lei, podemos partir para a questão principal: é justo que a Lei seja aplicável a projetos de grande porte, como os filmes produzidos pela Globo Filmes, artistas consagrados como Caetano Veloso, Alcione e Capital Inicial, e festivais de grandes proporções, como o Rock in Rio?

A lei não estabelece limites. Desde que seja um projeto cultural de relevância, viabilidade econômica e consistência, está ao alcance da lei Rouanet.

Mas a questão que se discute vai um pouco além da mera legalidade, para longe dos requisitos puramente objetivos. Quando se discute a eficácia e adequação na aplicação da lei, deve se buscar os reflexos sociais e o impacto da interpretação dos objetivos da lei.

Primeiramente, fica mais do que claro que, aos grandes projetos, restaria vedada a incidência da Rouanet pela via do Fundo Nacional de Cultura. Os próprios requisitos objetivos já definem as hipóteses cabíveis. Ademais, incentivos e privilégios concedidos pelo Estado devem sempre, em toda e qualquer situação, estar embasados em justificativas reais de desigualdade. É o famoso lema: para que todos sejam tratados como iguais perante a lei, os desiguais devem ser tratados de maneira desigual, na medida de sua desigualdade. E, no caso, não há desigualdade prejudicando os grandes projetos que justifiquem o privilégio concedido.

Logo de cara, já descaracteriza-se a grande crítica feita pela maioria dos críticos de plantão: dinheiro público não deve financiar artistas já consolidados, que ganham milhões. E não financiam.

Restariam as outras modalidades.

O Mecenato é um dos mais utilizados pelas grandes produções. E é o menos conhecido pelo grande público. Profissões como a de produtor cultural ou a de captador de recursos dependem desse tipo de procedimento. E foi ele o responsável pela origem do ramo do marketing cultural – que nada mais é que o esforço dispendido por produtores e captadores para convencer os departamentos financeiros e de marketing das empresas a investirem em seus projetos. A empresa, convencida do retorno comercial, investe no projeto apresentado e, em contra partida, “ganha” a publicidade da marca. Além, claro, de seu imposto de renda parcialmente abatido. Cabe aos produtores e captadores convencerem à empresa investidora de que o negócio compensa.

E o grande problema da Lei Rouanet reside ai: o tal do “compensa”. Não sejamos inocentes, claro, em achar que todos são movidos apenas por interesses angelicais! Mas, nesse caso, o interesse puramente econômico minou o objetivo inicial da Rouanet de estimular a produção cultural nacional, priorizar nosso produto cultural interno e reforçar a regionalização das manifestações culturais. Virou tudo um grande negócio.

A Rouanet virou refém das grandes empresas e dos grandes artistas. Ou dos que têm condição de estabelecer um bom departamento de marketing cultural. Afinal, dificilmente uma empresa deixará de investir em artistas consagrados, com visibilidade nacional, para estimular o regionalismo, bancando um projeto com repercussão local. A verba, no fim das contas, acaba bastante mal distribuída. Talvez até mais do que se fosse administrada por um órgão estatal, como era antes.

Num país utópico, onde empresas bem intencionadas se desenvolvem apegadas aos objetivos fundamentais da República, a lei daria certo. Mas no nível de desenvolvimento atual, o que acontece é que as grandes empresas se aproveitam da necessidade de patrocínio que grandes eventos possuem para divulgar suas marcas com um custo/benefício tentador. Tentação esta, obviamente, irresistível quando se trate de filmes fortemente produzidos, álbuns de artistas consagrados e festivais de visibilidade internacional.

Assim, ao tratar da questão, não devemos olhar os projetos, festivais, obras, discos e artistas que se beneficiam da Lei Rouanet como vilões. São eles apenas beneficiários de uma lei que não impôs mecanismos de contenção de interesses puramente comerciais de grandes empresas – estas sim as vilãs – deixando interesses regionais, artistas de pouca visibilidade e projetos de pouco alcance de público em segundo plano, sem ter a quem recorrer.

E, falsos moralismos à parte, poderíamos julgar tão duramente empresas capitalistas que lutam para obter suas parcelas de lucro, quando a lei oferece brechas tão facilmente aproveitáveis? A única culpada é a própria lei.

Desvios na aplicação dos recursos obtidos, concessões irregulares ou em desacordo com o que estabelece a legislação, obviamente, não entram nessa análise por serem manifestamente ilegais (caso recente observado no Rock in Rio).

A conclusão a que se chega é que não existe nada de errado, ou de ilegal, em grandes projetos se beneficiarem da Lei Rouanet. O que não quer dizer que não exista injustiça.

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