quinta-feira, 23 de abril de 2015

A verdade dói



Levou um tapa na cara assim que falou aquilo.

- Você vai aprender a me respeitar, moleque.
- Mas, mãe, eu só disse que você anda chata pra caralho. É verdade! Olha aí o tapa pra com--

E mais um bofetão, nem bem terminara a frase. No maior estilo Dona Florinda. Ficou sem entender o porquê de ter sido tão sincero com a mãe, assim de repente.

- E, João Guilherme! Não quero ouvir mais um pio! Sai da minha frente.

Era sério aquilo. Poderia lhe trazer problemas. Geralmente, falava a verdade pra provocar, ferir, magoar. Era assim que funcionava, não é? O tal do "jogar na cara". A verdade como carta na manga. Mas, por outro lado, dita assim sem segundas intenções, abria uma série de novas possibilidades.

E foi tentar na escola também.

- Professora, eu não fiz a lição porque acho matemática uma bosta. 
- Então, Leonardo, que tênis de gay pobre é esse seu aí. 
- Vanessa, cala essa voz desgramada sua, que ninguém é obrigado a ouvir.
- Tia Lurdes, lava a mão antes de me dar o salgado, que eu não sei onde você tava enfiando ela.
- Sim, eu gosto do Rodrigo Constantino.

Aquilo tudo tava bem divertido, uma sensação boa de liberdade e potência. Cada vítima de suas verdades tinha as próprias mentiras para se preocupar. Ninguém tinha armas o suficiente para revidar. Ou talvez fossem seus 1,70 metros, no auge da explosão hormonal, que botassem certa banca.

E continuou assim o dia inteiro. Até que encheu o saco. Precisava de desafios maiores, mais adrenalina. Talvez enfrentar alguma resistência, testar reações. Foi para a sala do diretor.

- Então, dr. Emival... Tô num humor especialmente bom hoje, dai queria pedir pro sr. não incomodar as aulas hoje. Não aparecer nas salas dando aviso, nem nada. É ruim pra desgraça, ninguém gosta, e não ajuda nada.

O diretor encarou o adolescente, meio incrédulo.

Depois da diretoria, ainda abordou o Roberto bedel, fez uma reclamação contra a turma da limpeza na coordenação e bombardeou alguns alunos novatos que jogavam bola no pátio. Atirava verdades cada vez mais recheadas de palavrões e inconveniências, sem calcular preço ou impacto.

No fim do dia, cansado mas satisfeito, dobrou o corredor rumo ao portão da saída. Já planejava o dia seguinte, distribuiria dardos despretensiosamente venenosos logo cedo pela padaria. Percorreria pontos de ônibus, drogarias, faria um tour pela cidade pra sentir a reação de estranhos. Conquistaria grandes aglomerações - cinema, shopping, estádio de futebol. Quem sabe, algum estúdio de televisão. Por fim, atacaria a própria família. A fronteira final.

Antes de chegar ao fim do corredor, entretanto, num canto especialmente escuro, levou uma gravata por trás. Não viu quem era, mas um sujeito gordo cheirando a vicky vaporub o jogou no chão e chutou suas costelas. Levou diversos socos no estômago e no rosto. Sentiu a cusparada quente no rosto. Pisando na sua mão, o gordo camuflado aproximou-se do ouvido do garoto:

- Então... seu porra! Tu é um desgraçado filho da mãe. Tá se achando bonito demais? Tu é um escroto. Ninguém precisa das suas verdades não. Enfia um pouco de educação nessa sua bunda fedorenta e tenha mais respeito pelos outros. Senão amanhã vai apanhar de novo.

A sombra obesa sumiu no corredor.

João Guilherme catou o que restou da dignidade no chão e foi embora pedir desculpas para a mãe. 

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Vinil




Quando eu era criança, acho que ali pelos 8 ou 9 anos, me lembro bem de ficar namorando por horas e horas a capa do LP do "Jiban - O Policial de Aço" que rodava no toca-discos. Também me lembro da minha mãe colocando o Edson Cordeiro pra cantar com a Cássia Eller ("Como assim? A voz fina é de um homem? E a grossa, de uma mulher?"). O Jordy com o "cococi, cocoçá", e a turma da xuxa nos aniversários. Vinil comandava.
Veio o CD. Curiosamente, o primeiro lugar que teve aparelho toca CDs lá em casa foi no carro. O aparelho para dentro de casa era caro demais! E os primeiros CDS comprados, coletâneas do Bach, Mozart e Vivaldi. Seguidos da trilha sonora dos Cavaleiros do Zodíaco. O toca discos foi sendo deixado de lado, mas só lembro de os meus pais doarem o aparelho uns 5 anos depois. A fita K-7 e os walkmans duraram mais, por causa do preço e por serem, durante um bom tempo, as únicas mídias graváveis.
A verdade é que, apesar de o toca-discos ter ido embora, os bolachões continuaram guardados. E, vez ou outra, esbarrando num deles, eu ficava me lembrando daqueles refrões do Jiban, Jaspion e Xuxa. Como é que aquilo produzia som? Quanta diferença para o som límpido e cristalino do MP3. Hoje, ainda temos música direto da nuvem, masterização própria para o iTunes, coisa fina.
Dai, ali pra 2006 mais ou menos, invoquei com LP de novo quando, passeando pelos "pregos" de Campinas com meu pai e meu irmão, vimos um cara vendendo um aparelho Phillips completo por R$80,00. Aquilo era acessível até para mim, bolsista estagiário da Defensoria Pública. Levamos pra casa.
Ressuscitei os velhos bolachões - e olha que tinha bastante coisa bacana, aprazível a ouvidos mais amadurecidos, já que a turma da Xuxa e o Jordy soavam, agora, bem fracos (menos pela idade do que pelas guitarrinhas metal-melódicas). Cavouquei uns Deep Purples, John Lennons e Miltons Nascimentos da minha mãe... eu lembrava do Kraftwerk também. Não achei o do Edson Cordeiro.
Uns tempos depois, atravessei a Rua 4 um dia com a Marina e achei muita coisa boa a R$10, R$15. Comprei a discografia do Guns, o Black Album do Metallica, mais da metade dos discos do Lobão. Legião Urbana. Engenheiros quase tudo também. A Marina pegou uns do U2. Preço de banana! Levei muita coisa boa pra complementar a discoteca. E, como o preço era muito bom, dava pra conhecer algumas coisas novas tb, arriscar porcarias. Peguei um duplo da Madonna muito bom - The Immaculate Collection. Mas ainda tava naquele lance de saudosismo e preço baixo.
Até que em 2010, em São Paulo, visitei a loja da Baratos Afins, na Galeria do Rock, e aí a coisa subiu de nível. Eu nem sabia que existia, mas comprei um LP do B.B. King LACRADO! Nunca antes tocado. Aquilo parecia uma máquina do tempo, direto para os anos 80. Acho que morri nuns R$50,00, também por causa do B.B.King, mas muito mais pela curiosidade de tirar o lacre de um LP em plenos anos 2010. Um ano depois, arrematei pelo mesmo valor o "Exile On Main Street" dos Stones, duplo mas usado, na feira livre do MASP. Devagarinho, aquilo ia virando mania.
Casei e juntei minha coleção com a da Marina - que, na verdade, eram coleções dos meus pais e dos pais dela. E hoje, já fiz uma lista de uns 30 discos que quero adquirir - clássicos - pra compor minha estante. De preferência, lacrados (na verdade, depende mais do bolso do cliente).
Sabe qual o problema? Uma galera redescobriu o vinil também, por motivos diversos. Virou meio modinha - sem querer desmerecer ninguém. E como a industria do vinil parou lá nos anos 80, o maquinário é o mesmo, a produção bem pífia, o preço subiu demais! Com as 50 pratas que eu paguei no B.B.King, hoje, eu não consigo nem um usado do Roberto Carlos. Outro dia, vi alguns álbuns usados do Capital Inicial a $100 lá no "Páginas Antigas", no centro - os mesmíssimos discos que eu tinha manuseado a $15 há 5 anos atrás.
Mas e aí? Vinil é melhor que CD? A modinha se justifica? 
O fato é que a mídia digital traz o som convertido de bits, dados. Por mais cristalino que seja, dizem que não possui o “espectro” auditivo completo, seria um som mais frio. O vinil, por sua vez, seria um som mais quente. A agulha, em contato com os sulcos do vinil preto, produziriam o som completo, sem lacunas (o que valorizaria, dentre outras coisas, os graves originais). Quase que como um instrumento musical em si mesmo. O mais próximo possível do som gravado originalmente em estúdio. Na teoria.
Argumentos prós e contras não faltam. E eu fico me perguntando: E DAÍ?
Acho chato pra caramba que a maioria das coisas virem times de futebol. Não bastasse a encheção de saco da política (“A culpa não foi minha, eu votei no Aécio” dãããã), agora gostar de vinil significa renegar o CD. E curtir MP3 significa rechaçar todo o anacronismo dos bolachões. Torcidas organizadas pra todo lado. 
Acho que o meio - digital ou analógico - continua sendo meio. Transmitem sensações diferentes e, por isso mesmo, devem complementar-se (de preferência, que não se tornem o fim em si mesmos). É impossível botar o vinil pra tocar no carro, a caminho do trabalho. Na minha opinião, a ocasião é perfeita para uma playlist selecionada, diretamente do smartphone ou do pendrive. CDs foram feitos para carros! Igualzinho ao primeiro toca CD da minha família. O trajeto é curto, o tempo nem tão longo, a atenção precisa estar dividida... e dá pra ouvir só as faixas preferidas, se for o caso.
Por outro lado, o vinil traz a sensação de obra completa. É para ser ouvido sem pressa, sem a necessidade de pular de faixa - cada uma em seu lugar, com antecessoras e sucessoras. Olhando o encarte, acompanhando a letra… ou mesmo em estado de absoluta contemplação - do tempo, dos instrumentos musicais, da mixagem. Escutar "Muros e grades", do Engenheiros, é fenomenal. Mas sacar ela no contexto que é o "Várias Variáveis" faz a coisa mudar de panorama. O mesmo caso de "Division Bell", do Pink Floyd, com todas aquelas transições de faixas. O que não tira o prazer de ouvir "High Hopes" isoladamente, do primeiro ao último sino. Mas são prazeres diferentes.
Sim, até dá pra fazer isso com o CD também. Mas qual foi a última vez que você fez isso? E a questão aqui vai além do que seja “útil” ou “possível” fazer. Eu tô falando do quê que te dá prazer. Você prefere tomar vinho no copo americano, ou na taça de cristal? Aquele chopp fica melhor no copo plástico, ou na caneca gelada? 
Ainda tem toda uma discussão sobre os prós e contras do que o Steve Jobs fez com o mercado fonográfico, aquele lance de comprar músicas separadas faixa a faixa, a modernização do conceito de “singles”, as paradas musicais virtuais… E o vinil com isso. Mas isso é questão pra outra hora.