terça-feira, 1 de novembro de 2011

O Sorriso do Palhaço


Quem é que faz rir aquele que faz rir? (atenção, pode conter spoilers)

Selton Melo, no significativo cartaz de "O Palhaço"

Em seu mais novo filme, “O Palhaço”, Selton Melo nos conduz ao mundo mágico e ao lado realista do circo, sem apelar para pieguismos ou saudosismos exagerados. Com uma sensibilidade emocionante, nos apresenta a rotina de um grupo mambembe nos anos 70, que segue por cidadezinhas do interior do país buscando espectadores cada vez mais escassos.

Benjamin, personagem vivido por Selton, é o administrador do circo Esperança, juntamente com seu pai, Valdemar, interpretado magistralmente pelo ator Paulo José. No picadeiro, os dois atuam como a dupla de palhaços Pangaré e Puro-Sangue, em meio a outras atrações inusitadas como a dupla de malabaristas “russos”, o levantador de peso sentimental, o contorcionista, o anão, a dupla de músicos, a mulher-coragem, a gorda do sutiã e o apresentador.

Benjamin não está satisfeito com os rumos que sua vida leva. Faz graça para entreter seus espectadores, mas não vê mais graça na vida que tem. Não se acha engraçado. E as circunstâncias o levam, meio que sem querer, a buscar mudanças.

O interessante é notar que, apesar de Selton Melo estar por trás de Benjamin, também está por trás das câmeras e do roteiro do filme. Assim, mesmo que Benjamin se veja como desinteressante e repetitivo, sua vida não o deixa perder a graça. Benjamin é um palhaço porque nasceu palhaço. Sua vida o faz rir (e a nós também). Com a direção, Selton perpetua a comédia que vemos no picadeiro, fazendo-a transcender às lonas. Ainda que a vida real por trás das maquiagens seja dura e pouco chamativa (o que fica evidente nos diferentes tipos de fotografia, responsabilidade de Adrian Teijido, usados durante os esquetes no picadeiro e nos bastidores das apresentações do grupo), a comicidade continua pelo tipo de direção escolhida por Selton.

O estilo contemplativo de filmagem, que muitas vezes se funde com o olhar curioso da única criança do grupo circense, dá equilíbrio ao clima cômico da obra. Aliás, é legal notar que a criança representa uma infância sóbria, sem o excesso de fantasia, que ao mesmo tempo que se diverte vendo as palhaçadas de Pangaré e Sangue-Puro, tem maturidade para identificar os problemas da vida real, dos bastidores. E que, em todo caso, será a responsável pela perpetuação da arte e do grupo.

Um dos aspectos mais bacanas do filme é que, para contar os dramas de um palhaço, Selton Melo escolheu compor o elenco por comediantes da velha guarda. Jorge Loredo, Ferrugem, Tonico Pereira e Moacyr Franco, antigos “palhaços”, conhecidos de todos os brasileiros. E, justamente por isso, o filme acaba se tornando uma singela homenagem a todos eles, com seus dramas pessoais, suas dificuldades, mas que nunca os impediu de nos fazer rir. E, ao contrário de filmes pura e explicitamente comerciais (como “Muita Calma Nessa Hora”, por exemplo), que reúnem elencos recheados de celebridades para faturar alguns tostões (e, talvez por isso mesmo, se utilizem de roteiros mal feitos, cheios de recortes, para acomodar todos esses nomes), os palhaços de Selton Melo nos brindam com um show de atuação, confirmando o peso que seus nomes possuem na comédia e, muito mais do que isso, na dramaturgia brasileira.

E, nesse ponto, imprescindível abrir parênteses para falarmos de Moacyr Franco. O ator e cantor encarna a figura de um austero delegado interiorano, que aparece em uma sequência de pouco mais de 3 minutos. Foi o suficiente para lhe garantir o prêmio de Melhor Ator Coadjuvante, no Festival de Cinema de Paulínia. Durante a exibição do filme no Festival, a atuação foi maciçamente aplaudida, a cena aberta. E, dizem, durante as filmagens, logo após o estalo da claquete, elenco e produção aplaudiram emocionadamente Moacyr. Foi a estreia dele nos cinemas.

Pois bem, mas, de repente, em sua busca por um sentido maior na vida, Benjamin nos apresenta a questão: Quem é que faz o palhaço rir? Quem faz rir aquele que faz rir? O próprio roteiro nos dá a resposta. No picadeiro, Pangaré e Puro-Sangue são o motivo da graça. Fora do circo, a própria vida proporciona a graça que Benjamin busca, frequentemente se surpreendendo com os outros palhaços – o delegado (Moacyr Franco), Jorge Loredo (chefe da repartição pública), Tonico Pereira (excelente, no papel de gêmeos, donos de uma oficina mecânica de beira de estrada) e Ferrugem (funcionário público).

No fim das contas, o filme é um ensaio sobre a comédia, de forma geral. Acostumados que estamos com a comédia nordestina, principalmente pela riqueza cultural dessa região do Brasil (que nos proporcionou talentos como Ariano Suassuna, Chico Anísio, Renato Aragão, Falcão, Tiririca, Regina Casé, dentre tantos outros), nos acomodamos a esperar que a comédia venha só de lá. Selton nos mostra a comédia mineira. O estilo de vida do interior de Minas Gerais é pano de fundo para o drama cômico pelo qual passam os personagens.

E esse lado da comédia vem com um outro aspecto interessantíssimo.

A atividade circense privou Benjamin de ter documentos civis. Não tem RG, CPF, nem comprovante de endereço. Só a certidão de nascimento. Ele é mais um cidadão brasileiro que apenas “nasceu”, não tem registros civis. E, por motivos diversos, precisou voltar à sua cidade natal para regularizar sua situação. Precisou regressar à sua cidade natal para assumir, integralmente, sua identidade. E, coincidentemente (mas, muito provavelmente, não), a cidade natal de Benjamin é Passos (Minas Gerais), cidade natal também de Selton Melo. Lá chegando, Benjamin recupera muito mais do que sua identidade de cidadão. Recupera o sentido da sua vida.

Em entrevistas recentes, Selton Melo tem indicado cada vez mais sua busca em aprofundar-se por outros ramos da dramaturgia e do cinema, revelando insatisfação em assumir apenas papéis de humor em filmes populares. Em “O Palhaço”, além de dirigir e atuar, ele é corroteirista, coprodutor e coeditor. Como os grandes diretores, ocupou-se de todos os principais aspectos. E, por ironia do destino (ou do roteiro mesmo), assim como Benjamin, ao regressar à sua cidade natal talvez tenha encontrado um pouco mais do que vem buscando em sua carreira. Sem dúvida alguma, deu um passo importantíssimo na consolidação de sua identidade como diretor. Podemos esperar muita coisa boa ainda pela frente!