domingo, 6 de março de 2011

Navalha ou Marmita?



Sem ter muito o que fazer no carnaval, eu estava assistindo ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, agora há pouco. E vi a São Clemente dedicar uma ala aos lendários malandros cariocas. Justamente! Tratados como lendários.

O malandro é lendário por dois motivos: primeiro, porque é uma figura do imaginário popular brasileiro. Entrou para o folclore nacional, um personagem da cultura popular. Segundo, porque já não existe mais do mesmo jeito que existia, nos primórdios.

O lendário malandro é carioca, freqüenta a Lapa, anda sempre bem vestido. Chapéu panamá de lado, terno de linho branco, sapato de duas cores e camisa listrada. O inseparável lenço na mão e a navalha no bolso. E é mestre em sobreviver ao sistema utilizando-se, com engenhosidade, de pequenos golpes e artimanhas. Para isso, a sutileza, a lábia e o carisma sobram. Nos dizeres de Lobão, em música (El Desdichado II) dedicada a Alcir Explosão (seu amigo e mestre da bateria da Mangueira), é aquele que “come na brecha da mão de quem vacila”. E está associado diretamente ao “jeitinho” brasileiro de se resolver as coisas.

Pratica pequenos furtos, pequenos estelionatos, envolve-se com prostitutas e, bem provavelmente, usa drogas. Mesmo que muitos entendam isto como ser apenas um bom apreciador de cachaça. Sabe se defender – para isso a navalha – e é amável, desde que não seja provocado. É o Don Juan brasileiro. Sobretudo, não tem como dissociar a figura do maladro da marginalidade e até da criminalidade, ainda que sutil e disfarçadamente encarnadas.

Posteriormente, o personagem acabou se nacionalizando.

Figuras que encarnam o típico bom malandro, na literatura e na música brasileiras (e até internacionais, mas apropriadas pela brasileira), não faltam. Zé Pilintra, Didi, Pedro Malasarte (vindo de Portugal), Zé Carioca (criado pela Disney), o gato Manda-Chuva (de Hanna-Barbera), João Grilo e Chicó são todos boa-vidas acostumados a passar os outros pra trás para se dar bem.

Esse personagem surgiu na primeira metade do século XX. Aproximadamente na década de 30, quando a explosão da era Vargas impôs um modelo voltado à disciplina e à valorização do trabalho, essas figuras teimavam em não se adaptar. A idéia era a de que o trabalho, na maioria das vezes, não resolvia a situação. Nas palavras do consagrado sambista Wilson Batista: “Eu vejo quem trabalha andar no misére”. Assim, o jeito malandro de se viver era um modo de justiça individual. Era a forma de a classe desprestigiada socialmente sobreviver, contrariando leis, autoridades e a classe rica dominante. Portanto, ele não deve de forma alguma ser confundido com a também cultural figura do playboy boêmio, que já tinha a vida ganha e praticamente morava nos cassinos cariocas, gastando o dinheiro herdado dos pais.

Aliás, o malandro sempre esteve visceralmente associado às rodas de samba. O maior representante, Bezerra da Silva, já dizia que “Malandro é o cara que sabe das coisas / Malandro é aquele que sabe o que quer / Malandro é o cara que ta com dinheiro / E não se compara com um Zé Mané”. Enfim, malandro é malandro, mané é mané.

O antagonismo entre a malandragem e a classe trabalhadora foi sintetizado nas rodas de samba como o conflito entre navalha e marmita. Wilson Batista e Noel Rosa, inclusive, travaram uma briga musical durante vários anos, criando quase dez canções tratando sobre a guerra entre marmita e navalha. A classe trabalhadora da Vila Isabel versus a malandragem da Lapa.

A malandragem fluminense era, também, um contraponto à sisudez do modo de vida paulistano. A indolência da malandragem carioca reforçava o antagonismo à disciplina paulista.

Esse movimento anti-trabalho do bon vivant da Lapa não era, obviamente, calculadamente organizado. O malandro não adotou esse modo de viver com motes revolucionários, convicção ideológica ou outro tipo de conclusão intelectual. E ainda que tenha surgido como alternativa a uma certa marginalização social, o malandro não possuía qualquer pretensão de mudar alguma coisa. Daí a razão de, no decorrer do tempo, rótulos como “preguiçoso”, “indolente”, “folgado” terem-lhe sido atribuídos.

O mais interessante de se notar é que, numa sociedade onde o trabalho e a honestidade são extremamente cultuados, a figura do malandro é inserida na seção dos heróis. A ponto de merecer a homenagem de uma ala da São Clemente.

Antes de mais nada (e creio que isso já restou claro, nesse ponto), o malandro não pode ser confundido nem com o bandido altamente perigoso, nem com o pessoal do colarinho branco. Não é porque rouba e mata que é malandro. Não é porque é corrupto e desvia milhões que é malandro. Pelo menos não aquele malandro original, da navalha no bolso e o lenço na mão. Daí porque muitos dizem que o malandro original já não existe mais. Perdeu-se na história e entrou para o folclore. A esse respeito, inclusive, a belíssima homenagem feita por Chico Buarque:

Homenagem Ao Malandro

Eu fui fazer um samba em homenagem
à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais.
Eu fui à Lapa e perdi a viagem,
que aquela tal malandragem não existe mais.
Agora já não é normal, o que dá de malandro
regular profissional, malandro com o aparato de malandro oficial,
malandro candidato a malandro federal,
malandro com retrato na coluna social;
malandro com contrato, com gravata e capital, que nunca se dá mal.

Mas o malandro para valer, não espalha,
aposentou a navalha, tem mulher e filho e tralha e tal.
Dizem as más línguas que ele até trabalha,
Mora lá longe, chacoalha, no trem da central

Talvez por esse motivo, a figura do malandro, apesar de associada à criminalidade e indolência, seja tão querida de tantos brasileiros. Justamente porque as ilegalidades praticadas não são em prejuízo da sociedade, mas apenas com o fito de sobreviver da melhor forma possível ao sistema opressor. O Zé Carioca e o Manda-Chuva têm alma boa. Ao contrário do “bandido de verdade”, que é capaz de crimes atrozes, seja assassinato, seja desvio de verbas públicas. Poucos reconhecem que o jeitinho brasileiro do malandro também é nocivo. Dar-se bem em cima dos outros é considerado arte. A malandragem é considerada arte.

E, infelizmente, o que o brasileiro não percebe é que o malandro deveria permanecer apenas no folclore brasileiro. É o motivo pelo qual o Brasil insiste tanto em permanecer no terceiro mundo. Porque o jeitinho brasileiro é doutrina. O verdadeiro malandro não existe mais, mas todo mundo carrega um pouco dele dentro de si.

O malandro é o espelho do brasileiro comum. Por isso ele é herói, com homenagem em escola de samba e tudo. E, enquanto for assim, as coisas vão evoluir com a mesma indolência do bon vivant da Lapa.